sábado, 28 de março de 2015

Ajustes e Arrochas

"A inviolabilidade das grandes propriedades, das fortunas, das heranças e do capital especulativo não é uma boa música de ouvir. Um dia esse som há de ser desligado".

Quando falta dinheiro em casa, procuramos saídas ou dançamos. Famílias de rendas médias ou altas excluem almoços fora de casa, bebidas e lazer aos finais de semana, economizam luz, telefone e repensam a tv por assinatura. A roupa nova e a troca do aparelho celular só no semestre seguinte e as viagens são adiadas. Numa outra vertente (a da receita), tentam obter uma grana extra, seja prestando serviço ou se desfazendo de itens como roupas,... acessórios e utilidades domésticas. Não à toa brechós estão em alta.

Por sua vez, famílias com rendimentos baixos ou que vivem no limite do básico da existência não tem muita gordura para queimar. A rotina social e afetiva muda, e muito. Em seus lares, excessos quase não existem e quando o negócio aperta para valer, o jeito é o apoio familiar (a solidariedade das receitas com doações), a venda de cosméticos, bicos aos finais de semana ou a luta por aumento de salários. Na ponta da despesa, a procura pelo aluguel mais barato, o chute para cima na prestação e a constante ausência física em casamentos, batizados e festas afins. 


Tanto numa, quanto noutra situação, qualquer ajuste requer tomada de decisão - que pode ser socialmente referenciada ou não. 


Com uma ou outra exceção, pelo que se tem visto, o padrão médio dos que estão no topo da pirâmide brasileira tende a preferir, por exemplo, demitir empregadas e contratar diaristas (negociando o preço para baixo), ao invés de retirar vinhos e jantares aos finais de semana. Seria uma indicação do nosso grau de fraternidade? 


E os governos, o padrão é o mesmo? Parece que sim. No Brasil, por cerca de quatro séculos, pessoas dos estratos altos é que vêm tomando decisões políticas e econômicas. Levy, Katia Abreu e Armando Monteiro são facetas dessa hegemonia. E não estão sós. 


Em ritmo de arrocha, esse grupo prefere retirar o abono salarial dos trabalhadores, cortar a pensão por morte de homens e mulheres jovens, retirar recursos da educação e da saúde pública a reduzir subsídios de Ministros, Juízes, Procuradores, Deputados e Senadores, a cobrar o imposto sobre grandes fortunas, a taxar especuladores estrangeiros com alíquotas progressivas de Imposto de Renda ou, verdadeiramente, taxar latifúndios com o Imposto sobre propriedade Territorial Rural. A austeridade, como se vê, tem lado, sempre teve.
 

Neste ritmo, a massa dos trabalhadores está dançando sobre ajustes e arrochas. Mas, a inviolabilidade das grandes propriedades, das fortunas, das heranças e do capital especulativo não é uma boa música de ouvir. Um dia esse som há de ser desligado.

terça-feira, 24 de março de 2015

Diálogos Econômicos


Filha: - Pai, por que tá faltando comida na geladeira?
Pai: - É que paguei hoje uma das prestações do banco.
Filha: - O senhor já pagou tantas e ainda deve mais que o original. O senhor sabe quais juros e encargos destas prestações?...
Pai: - Não. Foi o gerente quem calculou. Mas ouvi da Miriam e do Sardenberg que o sistema financeiro quer aumentar ainda mais os juros.
Estômago embrulhado e vazio, faz-se silêncio.
Até quando?

segunda-feira, 16 de março de 2015

Devolve, Gilmar!

Há um mal estar geral, uma crise, política e econômica, que é conjuntural e estrutural. No Brasil, os partidos tradicionais e seus líderes são pegos em financiamentos ortodoxos e, noutros casos, corrupção escancarada. O congresso, em sua ampla maioria, descolado que está das bases sociais (fruto da assimetria do poder econômico e financiamento empresarial) deslegitima-se. Setores ditos progressistas não se entendem, o que confirma a complexidade da conjuntura. No mundo, 1% da... população concentra mais da metade da renda e riqueza. O escândalo "Swissileaks", que descortinaria a lavagem de dinheiro, os paraísos fiscais e a expropriação de todo o tipo de crime, inclusive a evasão de divisas, é tangenciado.

A literatura demonstra que turbulências políticas paralisam ou criam dificuldades ao mundo dos negócios e do lucro. Se isso é verdade, não soa inverossímil que setores dominantes (os mesmos que sempre ganharam muito no Brasil), querendo manter a extorsão econômica secular, troquem peças do jogo. Tudo mudaria para nada mudar. Como tragédia ou como farsa, a história se repetiria (daí porque, há entre petistas e eleitores da Dilma, a sensação de golpismo). O terceiro turno, nesse ponto de vista, ocorreria mais como uma medida preventiva (de estabilidade econômica dos setores dominantes), que de uma confrontação real de seus próprios interesses em disputa. 


Por sua vez, depois de uma eleição tensa, fruto de desconstrução, de mentiras (para todos os lados), os eleitores dos candidatos tradicionais derrotados ainda não deglutiram a derrota nas urnas. Ocorre que também não parecem muito preocupados em enfrentar os mesmos que sempre ganharam muito no Brasil, mas somente a parte visível e governista deles. Na média, acreditam que tirar o PT ou fazer o "Fora Dilma" já seria suficiente para "uma nova política", "mais limpa" (deve até pensar alguns). Doce ilusão. 


A luta contra a corrupção é de todos, não só de quem usa camisa verde ou amarela. Passa também pelos que usam vermelha, limão ou salmão. Ou quem sabe, seja a própria representação da bandeira LGBT, com seu arco-írís. 


A saída da crise passa pela política e não por sua negação ou violência. 
Mas, afinal, qual política?  Uma política cujo congresso elege presidentes como Renan e Eduardo Cunha? Uma política de cunho autoritário como foi a de caráter militar, que censurou, torturou e cassou mandatos legítimos? Decididamente, não. 

Alio-me àqueles que desejam uma reforma política, com caráter democrático, com participação popular e apoiada numa coalizão que diz: "basta de financiamento empresarial nas eleições!".
E, antes de entoar o coro do "Fora Dilma!", prefiro dizer: "Devolve, Gilmar!"

terça-feira, 3 de março de 2015

Que dívida é essa?


"O Brasil não promoverá ao seu povo justiça e soberania sem rever o relacionamento com o sistema financeiro, nacional e internacional.”

Joana e Paulo não se conhecem. Ela, uma jovem comerciária do interior de Goiás. Ele, um sexagenário carpinteiro do Rio Grande do Sul. Assim como milhões de brasileiros, Joana e Paulo são trabalhadores comuns - nunca operaram na bolsa de valores, não sabem o que é swap reverso ou atuaram como personagens do filme “O lobo de Wall Street”. Ambos, porém, são afetados pelos que agem dessa forma, especulando na ciranda do sistema financeiro da dívida pública.

Em janeiro de 2011, Joana e Paulo resolvem aplicar uma quantia de recursos que guardavam em casa (os dados são reais). Joana efetua um depósito de R$1.518,31 na caderneta de poupança. Paulo, aconselhado pelo filho, adquire um título público do governo federal brasileiro, por exatos R$1.518,31.

Sem precisar assinar contrato, Joana, aplicando na poupança, em verdade, empresta dinheiro ao banco, que promete devolver-lhe acrescido de juros. No invisível acordo, há cláusula que diz: “Joana, caso queira desistir de nos emprestar, no todo ou parte, pode sacar seu dinheiro a qualquer hora. Nosso banco, contudo, não pagará juros sobre o montante resgatado. Juros integrais serão incorporados somente se o dinheiro permanecer em nosso poder, por 30 dias corridos”.

Paulo, em sua transação, empresta R$1.518,31 ao governo federal. Ao entregar suas economias, obtém em troca um título público do governo - algo similar a uma nota promissória, com vencimento no futuro. O título (papel) fica na posse de um intermediário do sistema financeiro (banco, corretora de valores, etc.), que pela guarda cobra um percentual sobre a transação. O título de Paulo é reconhecido e garantido pelo Estado e leis brasileiras, cuja promessa é reembolsá-lo, com juros incorporados numa data determinada.

Joana e Paulo não são agiotas ou vivem de rendas. Isoladamente, Joana não dita quanto o banco terá que reembolsá-la pelo dinheiro depositado na poupança. Paulo também não define quanto o governo federal deverá remunerá-lo, por meio de juros. A taxa acordada é conhecida e previamente fixada na transação, mas não diretamente por Joana ou Paulo.

São bancos e grandes agentes do sistema financeiro (esses sim, que ganham com juros e especulações) que fixam e influenciam quais taxas serão cobradas ou pagas nos empréstimos às Joanas, Paulos, aos governos e demais instituições. A lógica do sistema é: quanto menos pagar juros sobre o dinheiro recebido das Joanas, empresas e governos (que pode ser “taxa zero”, por exemplo, se utilizarem saldos mantidos em contas correntes, que não oferecem remuneração), e quanto maior a taxa cobrada nos empréstimos aos governos, demais organizações e à população em geral, maiores serão seus ganhos.

Em nosso exemplo, o depósito (empréstimo) de Joana ao Banco, por meio da caderneta de poupança, lhe renderá R$329,74 em três anos, alcançando o montante de R$1.848,05. Ou dito de outra forma: o banco pagará à Joana 21,71% de juros pelo depósito/empréstimo realizado. Paulo, neste intervalo, pelo empréstimo de mesmo valor, R$1.518,31, ao governo federal, receberá R$694,36 de rendimento. Isto é, em janeiro de 2014, seus recursos alcançaram o montante de R$2.212,67, obtendo 46,12% de juros. Sobre os valores de Paulo incidirão imposto de renda e a taxa anual cobrada pelo agente financeiro por manter o título guardado. Contudo, do ponto de vista líquido, Paulo sai, praticamente, com o dobro do ganho de Joana.

Em termos microeconômicos, Paulo não definiu ou teve poder em definir qual taxa de juros o governo lhe pagaria. No dia da transação, ele embarcou de “carona” na mesma taxa que bancos especulavam para emprestar ao governo federal. Os 46,12% do ganho bruto de Paulo nada mais são do que uma representação dos rendimentos alcançados por bancos contra o governo brasileiro, quando eles emprestam bilhões de reais, no atacado.

O ganho de Paulo - ou de milhares dele - não repercute significativamente do ponto de vista absoluto (embora impressionem, em termos percentuais). É o volume gerido por bancos oriundos de seus instrumentos especulativos e do caixa de grandes empresas que representam, em termos absolutos, a sangria do orçamento do governo brasileiro.

O economista Thomas Piketty, em entrevista concedida ao programa Roda Viva, na TV Cultura, afirmou: “Alguns países estão pagando juros de suas dívidas públicas mais do que estão investindo em seus sistemas universitários, como a Itália e a Espanha. [...] Esta é a maneira correta de preparar o futuro, em particular para as próximas gerações? Certamente não.” Piketty não falou, mas no caso brasileiro, gastamos menos com toda a educação pública da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, da creche ao ensino superior, de materiais aos salários dos professores, do que com o gasto de juros da dívida pública federal. Mas, ao invés de barrar a sangria da dívida, o governo faz contingenciamento de 30% sobre os recursos da educação.

A farra do setor financeiro sobre recursos públicos é maior do que qualquer outra festa de horror provocada pela corrupção das empreiteiras, mensalões ou desperdícios. Em 2014, foram aproximadamente 200 bilhões de juros contabilizados sobre essa rubrica. Há ainda outro montante, sem transparência à sociedade, que também são juros, mas apropriados como correção monetária. Estimativas apontam outros 150 bilhões. Que dívida é essa, que consome tudo de tantos?

A situação ganha contornos complexos, pois cada vez mais bancos e agentes financeiros detêm, em última instância, participação em conglomerados empresariais, urbanos e rurais. Assim, o setor financeiro pode precificar, não somente as taxas de juros, mas a própria inflação, se decidirem influenciar o aumento de preços dos produtos e serviços das empresas sobre seu controle. Uma coisa é certa, o Brasil não promoverá ao seu povo justiça e soberania sem rever o relacionamento com o sistema financeiro, nacional e internacional.