terça-feira, 3 de março de 2015

Que dívida é essa?


"O Brasil não promoverá ao seu povo justiça e soberania sem rever o relacionamento com o sistema financeiro, nacional e internacional.”

Joana e Paulo não se conhecem. Ela, uma jovem comerciária do interior de Goiás. Ele, um sexagenário carpinteiro do Rio Grande do Sul. Assim como milhões de brasileiros, Joana e Paulo são trabalhadores comuns - nunca operaram na bolsa de valores, não sabem o que é swap reverso ou atuaram como personagens do filme “O lobo de Wall Street”. Ambos, porém, são afetados pelos que agem dessa forma, especulando na ciranda do sistema financeiro da dívida pública.

Em janeiro de 2011, Joana e Paulo resolvem aplicar uma quantia de recursos que guardavam em casa (os dados são reais). Joana efetua um depósito de R$1.518,31 na caderneta de poupança. Paulo, aconselhado pelo filho, adquire um título público do governo federal brasileiro, por exatos R$1.518,31.

Sem precisar assinar contrato, Joana, aplicando na poupança, em verdade, empresta dinheiro ao banco, que promete devolver-lhe acrescido de juros. No invisível acordo, há cláusula que diz: “Joana, caso queira desistir de nos emprestar, no todo ou parte, pode sacar seu dinheiro a qualquer hora. Nosso banco, contudo, não pagará juros sobre o montante resgatado. Juros integrais serão incorporados somente se o dinheiro permanecer em nosso poder, por 30 dias corridos”.

Paulo, em sua transação, empresta R$1.518,31 ao governo federal. Ao entregar suas economias, obtém em troca um título público do governo - algo similar a uma nota promissória, com vencimento no futuro. O título (papel) fica na posse de um intermediário do sistema financeiro (banco, corretora de valores, etc.), que pela guarda cobra um percentual sobre a transação. O título de Paulo é reconhecido e garantido pelo Estado e leis brasileiras, cuja promessa é reembolsá-lo, com juros incorporados numa data determinada.

Joana e Paulo não são agiotas ou vivem de rendas. Isoladamente, Joana não dita quanto o banco terá que reembolsá-la pelo dinheiro depositado na poupança. Paulo também não define quanto o governo federal deverá remunerá-lo, por meio de juros. A taxa acordada é conhecida e previamente fixada na transação, mas não diretamente por Joana ou Paulo.

São bancos e grandes agentes do sistema financeiro (esses sim, que ganham com juros e especulações) que fixam e influenciam quais taxas serão cobradas ou pagas nos empréstimos às Joanas, Paulos, aos governos e demais instituições. A lógica do sistema é: quanto menos pagar juros sobre o dinheiro recebido das Joanas, empresas e governos (que pode ser “taxa zero”, por exemplo, se utilizarem saldos mantidos em contas correntes, que não oferecem remuneração), e quanto maior a taxa cobrada nos empréstimos aos governos, demais organizações e à população em geral, maiores serão seus ganhos.

Em nosso exemplo, o depósito (empréstimo) de Joana ao Banco, por meio da caderneta de poupança, lhe renderá R$329,74 em três anos, alcançando o montante de R$1.848,05. Ou dito de outra forma: o banco pagará à Joana 21,71% de juros pelo depósito/empréstimo realizado. Paulo, neste intervalo, pelo empréstimo de mesmo valor, R$1.518,31, ao governo federal, receberá R$694,36 de rendimento. Isto é, em janeiro de 2014, seus recursos alcançaram o montante de R$2.212,67, obtendo 46,12% de juros. Sobre os valores de Paulo incidirão imposto de renda e a taxa anual cobrada pelo agente financeiro por manter o título guardado. Contudo, do ponto de vista líquido, Paulo sai, praticamente, com o dobro do ganho de Joana.

Em termos microeconômicos, Paulo não definiu ou teve poder em definir qual taxa de juros o governo lhe pagaria. No dia da transação, ele embarcou de “carona” na mesma taxa que bancos especulavam para emprestar ao governo federal. Os 46,12% do ganho bruto de Paulo nada mais são do que uma representação dos rendimentos alcançados por bancos contra o governo brasileiro, quando eles emprestam bilhões de reais, no atacado.

O ganho de Paulo - ou de milhares dele - não repercute significativamente do ponto de vista absoluto (embora impressionem, em termos percentuais). É o volume gerido por bancos oriundos de seus instrumentos especulativos e do caixa de grandes empresas que representam, em termos absolutos, a sangria do orçamento do governo brasileiro.

O economista Thomas Piketty, em entrevista concedida ao programa Roda Viva, na TV Cultura, afirmou: “Alguns países estão pagando juros de suas dívidas públicas mais do que estão investindo em seus sistemas universitários, como a Itália e a Espanha. [...] Esta é a maneira correta de preparar o futuro, em particular para as próximas gerações? Certamente não.” Piketty não falou, mas no caso brasileiro, gastamos menos com toda a educação pública da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, da creche ao ensino superior, de materiais aos salários dos professores, do que com o gasto de juros da dívida pública federal. Mas, ao invés de barrar a sangria da dívida, o governo faz contingenciamento de 30% sobre os recursos da educação.

A farra do setor financeiro sobre recursos públicos é maior do que qualquer outra festa de horror provocada pela corrupção das empreiteiras, mensalões ou desperdícios. Em 2014, foram aproximadamente 200 bilhões de juros contabilizados sobre essa rubrica. Há ainda outro montante, sem transparência à sociedade, que também são juros, mas apropriados como correção monetária. Estimativas apontam outros 150 bilhões. Que dívida é essa, que consome tudo de tantos?

A situação ganha contornos complexos, pois cada vez mais bancos e agentes financeiros detêm, em última instância, participação em conglomerados empresariais, urbanos e rurais. Assim, o setor financeiro pode precificar, não somente as taxas de juros, mas a própria inflação, se decidirem influenciar o aumento de preços dos produtos e serviços das empresas sobre seu controle. Uma coisa é certa, o Brasil não promoverá ao seu povo justiça e soberania sem rever o relacionamento com o sistema financeiro, nacional e internacional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário